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Saúde é direito de todos

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Por Ana Maria Malik

 

Mudou a população ou mudou o sistema?

Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, o acesso aos serviços de saúde no Brasil era subdivido em algumas categorias: havia os pacientes particulares (hoje em dia chamados pagadores out of pocket); os pacientes previdenciários (aqueles que recolhiam uma quantia para a previdência social, em decorrência de serem empregados formais, com carteira profissional assinada); alguns segurados (por institutos públicos, como o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo – Iamspe); outros beneficiários de alguns poucos planos de saúde privados então existentes (como a Samcil, a Amil, alguma Unimed ou vinculados a empresas como a CASSI, entre outros); os rurais (com algum grau de cobertura de saúde por meio do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural); e os então denominados indigentes, impossibilitados de remunerar os serviços prestados de alguma maneira. Nas Santas Casas de Misericórdia, um tipo de serviço de saúde disponível no país logo após o descobrimento (anos 1500) até os dias de hoje, era possível para cidadãos de quaisquer dessas categorias serem atendidos.

Em alguns serviços públicos, principalmente universitários, havia classificação econômico-social, o que permitia a entrada de pacientes particulares (sem outro tipo de cobertura) mediante o pagamento de taxas, devido à sua faixa de renda ou mediante interesse científico (casos que merecessem ser estudados) e, ainda, mediante interesse administrativo (se e quando a administração pública quisesse oferecer os cuidados tendo em vista características pessoais). Como a apuração de custos nesses serviços até os anos 1980 era muito incipiente e havia resistência a realizar cobranças em ambientes públicos, as taxas eram bastante baixas, principalmente diante dos custos dos serviços utilizados para realizar a classificação, fazendo com que, finalmente, esse tipo de cobrança fosse descontinuado.

No início da década de 1980 (a partir de 1982) foi criado o Programa das Ações Integradas de Saúde (Pais), uma iniciativa entre diferentes Ministérios (Saúde/Previdência/Educação), como maneira de unificar a assistência pelo menos aos pacientes sem cobertura privada. Em 1983, o Pais deixou de ser um programa para se tornar uma estratégia (renomeada AIS, Ações Integradas de Saúde). Ou seja, um programa é previsto para ter algum término, enquanto uma estratégia é mais abrangente, tanto no tempo quanto na dimensão espacial.

A partir desse momento, muitos dos profissionais da assistência se ressentiram do aumento da demanda: em vez de atender pacientes de uma única categoria, passaram a ser chamados a dar resposta a todo tipo de paciente, com outras características econômicas e sociais.

A seguir, já durante os trabalhos da Constituinte, em 1987, foi instituído o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Neste, além dos Ministérios trabalharem juntos, as instâncias estaduais e municipais também deveriam estar integradas. O princípio por trás dessa política era a distribuição da população pelo território nacional. Porém, a distribuição dos recursos de infraestrutura de saúde e de recursos financeiros não seguia o mesmo padrão. Dizia-se que cada estado e cada nível de governo contribuía com o que tinha, ou seja, a gestão (e necessariamente a governança) deveria ser tripartite, orientada pelas necessidades da população.

De maneira otimista, pode-se assumir o início de um privilégio ao compartilhamento de recursos e à valorização dos perfis epidemiológicos. A resistência dos profissionais da assistência continuava: além de reclamarem do aumento de demanda, ainda se ressentiam da sua percepção de continuada restrição de recursos. Essas reclamações não estão documentadas em produção acadêmica, mas são lembradas por gerentes de serviços da época.

Com a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, ficou estabelecido, em seu Artigo 196, a saúde como direito de todos. Nesse caso, saúde passou a ser entendida em relação ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Assim, o termo saúde substituiu os conceitos de doença, enquanto o acesso universal e igualitário se sobrepôs a todas as diferenças de classificação entre os tipos de pacientes apresentada até então. Dessa forma, por exemplo, o conceito de indigente foi superado pelo de cidadão, assumindo o país o financiamento do sistema pelo orçamento fiscal e, portanto, proveniente de todo tipo de bem ou serviço consumido, além do Imposto sobre a Renda.

Sob os céus do SUS

O SUS está em implantação desde 1988. No entanto, como a realidade é extremamente dinâmica, ele dificilmente será integralmente implantado para toda a população brasileira, pois os serviços, a disponibilidade de tecnologia de todo tipo e as informações mudam cotidianamente. Nesse mesmo ano, por exemplo, a existência da assistência médica suplementar era totalmente diferente da atual. A primeira grande mudança só ocorreria uma década depois, a partir da promulgação da Lei nº 9.656/98, com a tentativa de normalizar e regular as empresas desse mercado, e, desde 2000, com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). As duas medidas foram tomadas com a intenção de proteger os cidadãos beneficiários dessa modalidade, suplementar em relação à assistência pública. A ANS é vinculada ao Ministério da Saúde, sendo a indicação de seu presidente referendada pelo Senado Federal.

Seja como for, o SUS é o maior sistema universal de saúde do mundo, responsável por mais de 200 milhões de habitantes, no que se refere a atividades para além da assistência médico-hospitalar, como a vigilância epidemiológica, sanitária e imunizações, além de pesquisa e inovação. Porém, como ocorre com todos os tipos de recursos de infraestrutura de assistência médico-hospitalar no Brasil, o número de beneficiários também varia de acordo com a região do país. É possível olhar para regiões e estados como um todo, onde as variações são grandes; olhando para alguns municípios, contudo, é possível observar concentrações maiores da população coberta por operadoras de planos de saúde (OPS) diante de pessoas integralmente dependentes dos serviços públicos, às vezes de mais de 50%.

A renda é um dos determinantes dessas variações: as regiões metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte, por exemplo, bem como o Distrito Federal, demonstram esse fenômeno. As estatísticas gerais mostram cerca de 30% da população brasileira com direito a planos de saúde. Falando em porcentagem, os 30% são pouco em relação ao total. Isso, contudo, torna os beneficiários da assistência médica suplementar brasileira um dos maiores contingentes dependentes de seguros privados do mundo (esse grupo populacional é maior do que o total de habitantes de diversos países que têm sistemas públicos de saúde, como Portugal ou Espanha). É importante lembrar, ainda, que no Brasil a aquisição de um plano de saúde privado –seja por cidadãos individualmente seja pelos seus empregadores – é opcional, diferentemente do que ocorre em outros países.

Existe, portanto, a cobertura universal do SUS, a realizada pela assistência médica suplementar e aquela adquirida diretamente pelos cidadãos, mesmo pelos que não dispõem de muitos recursos financeiros. Ou seja, embora as categorias existentes antes da Constituição de 1988 não existam mais enquanto tal, a realidade se encarrega de mostrar as diferenças no alcance da cidadania plena. Por exemplo, em termos de incorporação de tecnologia, para a população que depende do SUS valem as orientações emanadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão que desde 2011 assessora o Ministério da Saúde em sua tomada de decisões em relação à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias pelo SUS, das quais fazem parte protocolos clínicos ou diretrizes terapêuticas.

Já para a população beneficiária da assistência médica suplementar vale o disposto no rol de procedimentos e eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma lista de consultas, exames, cirurgias e tratamentos, atualizada periodicamente, que as operadoras de planos de saúde são obrigadas a fornecer de acordo com o plano a que o segurado tem direito. Uma peculiaridade do SUS e dessas classificações é que, por vezes, beneficiários de planos de saúde usam os serviços públicos por facilidade ou por disponibilidade.

É conhecido que há muitas categorias de planos de saúde, com distintos graus de cobertura para procedimentos. Alguns dos quais de alta complexidade, financiados quase que exclusivamente pelo orçamento público. É frequente no planejamento municipal os gestores considerarem a população como um todo no momento de definirem as ações que pretendem realizar, não levando em conta quem teria direito a outras alternativas, considerando o princípio da universalidade.

Diante desses diferentes instrumentos de consulta/assessoria/informação, as tecnologias (procedimentos, medicamentos, protocolos) a que a população tem direito certamente não são homogêneas. Assim, entra em ação um mecanismo de busca por direitos cada vez mais comum no sistema: a judicialização. Essa ideia comporta um tipo de demanda e de resultados quando a judicialização ocorre contra o SUS, setor público, e quando é voltada aos planos de saúde. Em primeiro lugar, entra em ação um novo ator, o poder judiciário. Uma das poucas coisas comuns aos julgamentos dos dois tipos de ação movidas é que o judiciário tende a favorecer o cidadão, por considerá-lo, usualmente, hipossuficiente.

Os recursos utilizados para cumprir as ordens judiciais desses processos são originários de diferentes fontes. No caso do setor público, o orçamento vem da instância federativa envolvida na ação; no caso dos planos de saúde são os recursos pagos pelos beneficiários que entram em questão. Indiscutivelmente, porém, cabe dizer que os recursos são provenientes do coletivo (em última instância, dos bolsos dos cidadãos pagadores de impostos e consumidores de quaisquer bens e serviços) para destinação de beneficiários individuais.

Dependendo do caso, muito poucos são os que recebem a autorização para consumo de tecnologias de alto custo, em detrimento de outros produtos ou serviços que poderiam servir à sociedade de maneira ampla. A judicialização, seja pelo prisma que for, consome cada vez mais recursos e isso interfere nos orçamentos, independente dos cálculos atuariais. A noção de risco entra na discussão atuarial e a de finitude de recursos faz parte das lógicas orçamentárias, deixando claro que, embora as necessidades (ou os desejos) sejam infinitas, os recursos têm um limite muito claro.

Uma solução para esses impasses pode estar na implantação de um modelo de governança mais transparente, no qual de fato – como previsto em lei – haja a participação dos diferentes níveis de governo, da iniciativa privada e de diferentes representantes da população, que fazem parte do Conselho Nacional de Saúde (CNS), conforme a Lei nº 8.142/90.

Seguindo os pilares da governança corporativa (transparência, equidade, responsabilidade corporativa e prestação de contas) seria mais fácil compreender os processos decisórios que norteiam a implantação das políticas de saúde e suas estratégias, além das populações a que elas se propõem beneficiar. Por exemplo, se por um lado a equidade (não a igualdade) é um dos princípios do SUS, a prestação de contas, juntamente com a transparência, sempre deveria ser considerada na utilização de recursos que visem ao bem comum (como é o caso de qualquer ação de saúde, que repercute na sociedade e na economia).

A implantação da Constituição não acabou, nem a do SUS

Ainda há direitos que o cidadão brasileiro não consegue usufruir, por mais que estejam garantidos constitucionalmente. Nem na educação, nem na saúde, nem na previdência, nem na segurança. No entanto, 2023 é muito diferente de 1988; 35 anos se passaram e imprimiram mudanças não só no Brasil, não só na forma de se entender o mundo, na disponibilidade de informações e nas fronteiras entre países e classes sociais. Há caso em que ficou mais fácil, outros, mais difícil. Algumas das ferramentas desenvolvidas, alegadamente para diminuir as distâncias, por vezes as aumentam, como é o caso da internet. Se não houver esforços, ela não chegará para todos e continuará concentrada.

Para conseguir afirmar que saúde é um direito de todos, é necessário no mínimo perceber, como diz o Artigo 196 da Constituição, que ela é um dever do Estado e que requer políticas públicas sociais e econômicas. Assim como o SUS, essa implantação não pode ser de governo, mas sim de Estado e, nesse caso, o cidadão pode ser considerado uma força impulsionadora do bem comum.

Pelo menos perante a saúde, o Brasil e os brasileiros caminharam muito. Vacinas, atenção básica, água tratada, acesso a medicamentos essenciais, regulação para alta complexidade (principalmente voltada a transplantes, situação em que o país é um case de sucesso) mostram os avanços do século XXI em relação a três décadas atrás.

O que cabe buscar ainda? Mais conhecimento, para profissionais, gestores e cidadãos; mais senso de coletivo, mais literacia na saúde e até mesmo mais compromisso com a sua própria saúde. Mas muitos desses componentes não podem ser deixados apenas como responsabilidade do cidadão. Sua atuação tem limites. Os determinantes sociais são evidências dessas limitações. Há muito caminho pela frente. E, como dizia o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, em Morte e vida Severina, poema dramático escrito nos anos 1950, quando não se discutia nem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nem os determinantes sociais, “muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás”.

 

MALIK, Ana Maria. Saúde é direito de todos. In: BIS, Boletim da Secretaria de Saúde, São Paulo, outubro /2023.

 

Ana Maria Malik é MD, MSc, PhD, Profa. titular da FGV-EAESP e Acadêmica da Academia Brasileira de Qualidade (ABQ).

 

* A opinião manifestada é de responsabilidade da autora e não é, necessariamente, a opinião do IES

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DFIT SHAPE
4 de maio de 2024 20:42

A promoção da saúde é um direito essencial, e o SUS desempenha um papel crucial nisso. No entanto, é interessante ver como a assistência médica suplementar, com a possibilidade de incluir suplementos alimentares como a creatina em seus planos, pode ser uma alternativa para garantir uma cobertura mais ampla e personalizada para diferentes perfis de saúde.

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